quarta-feira, 24 de maio de 2017

Deformar a percepção

Nas experimentações que estamos fazendo do corpo na cidade, temos pensado em duas coisas:
- perceber/reconhecer os padrões do espaço pelos sentidos do corpo (padrões visuais, sonoros, olfativos, gustativos e táteis) e utilizar esses padrões como estímulos para a pesquisa de movimentos;
- subverter esses padrões do espaço e também os padrões do corpo na relação com os espaços.

Esses pontos tem nos levado a gerar ações corporais que tratam/apresentam uma inadequação do corpo à cidade, um desencaixe entre o corpo e os espaços urbanos. Um corpo que se debate com a cidade, ao mesmo tempo que gruda nela, que busca se encaixar, mas vai se deformando, entortando e modificando. O trecho de Heráclito que trata de um homem bêbado conduzido pela mão por um rapaz imberbe, se reflete em uma corporeidade que cai, que tropeça, que não se sustenta em pé e que não segue o padrão anatômico, ereto e civilizado do ser humano/urbano.

Hoje, na aula, o Marcus falou sobre deformar a percepção, no sentido de modificar o modo de perceber as coisas. Na pesquisa de mestrado que desenvolvo investigo a construção do que tenho chamado de "corpo-desviante", que se dá nas experimentações performáticas que faço em espaços urbanos. A construção desse corpo vem de um vontade de gerar outros modos de relação com o corpo e os espaços arquitetônicos e urbanos e de modificar/deformar as formas do corpo e do espaço a partir dessas relações.

No ensaio de hoje (24/05/2017) experimentamos a Área das árvores, localizada atrás da Faculdade de Educação. Esse é o segundo espaço do nosso trajeto. Como disse, a proposta é que ocorra uma caminhada coletiva que vai do Jardim da Faculdade de Educação até o Centro de Excelência em Turismo. Os participantes da caminhada serão convidados a ampliarem a atenção para os sentidos corporais na relação com os espaços por onde passarem e também a experimentarem e comporem com os espaços, se assim desejarem.

A caminhada alterna andanças e paradas. Durante as andanças, serão propostas algumas ações coletivas, para serem realizadas pelos participantes da performance. Ações simples que envolvam equilíbrio e/ou dispositivos que levem a atenção dos participantes para o próprio corpo e para os sentidos.

Durante as paradas ocorreram composições de movimento com os espaços, realizadas pelos performers. Essas composições visam revelar e subverter a percepção dos padrões do corpo e do espaço e também estimular os participantes da caminhada a comporem com os espaços.

Os vídeos estão carregando e já posto os links.

terça-feira, 23 de maio de 2017

4º Ensaio: trajeto e espaços definidos - estruturas de movimento no 1º e 2º Espaços do Trajeto

4º Ensaio: 23/05/2017

Decidimos que a caminhada-performance ocorrerá no Trajeto que vai: do Jardim da Faculdade de Educação até o Centro de Excelência em Turismo.

Improvisamos e passamos por cinco espaços pelo trajeto definido. Gravamos um vídeo no primeiro e no segundo dos espaços improvisados, que serão os primeiros dois lugares de parada da caminhada para composição com o espaço.
Seguem os vídeos no link abaixo:
1. https://youtu.be/hIWbwgkExaA
2. https://www.youtube.com/watch?v=B-ZBGRbQnrg&feature=youtu.be


Espaços:

  1.    Corredor lateral do prédio da Faculdade de Educação (coberto por uma marquise):
Ações: Raoni
- Ir caminhando pisando nos retângulos do piso no chão, sem pisar nas linhas, e cada pé em um retângulo. Andando em diagonal, cruzando o espaço do corredor. Ressaltar essa característica do corredor, de ser um espaço comprido e de trânsito, deslocamento do corpo. Evidenciar o padrão dos pisos do chão, muitos pisos e retangulares. Ao mesmo tempo romper com o padrão do corredor ao caminhar em diagonais, cortando o espaço e ressaltando sua largura. Ao final do corredor, passo atrás de uma das pilastras de concreto, das que circundam e sustentam a marquise, e vou para o chão.
- Ir ao chão com mãos e pés no chão, ainda colocando partes do corpo dentro dos retângulos do chão (mãos, pés, antebraço, canela). Cada parte do corpo em um piso e ir me deslocando a partir dessa dinâmica, até chegar a uma pilastra branca.
- Ir me apoiando e subindo na pilastra. Jogo de encaixar o corpo e grudar partes do corpo na pilastra e isso ir gerando movimentos. Ficar de frente para a parte mais larga da pilastra e abraça-la, grudar e desgrudar da pilastra com partes do corpo (coluna, quadril e cabeça), arrastar e girar os braços (em torno do próprio eixo do osso) pela pilastra, pendurar o corpo com os braços segurando a pilastra estando com as costas coladas na pilastra (braços atrás do corpo), cair para frente da pilastra com os pés ainda grudados nela, ir ao chão e voltar algumas vezes, de frente para a parte mais fina da pilastra abraçar a pilastra com braços e pernas, virar de costas para a parte mais larga da pilastra e ir deslizando o corpo até o chão (voltar pelo mesmo caminho e na mesma qualidade de movimento e repetir algumas vezes), me arrastar pelo chão enfatizando a lisura do chão de mármore branco, ficar de lado para a parte mais fina da pilastra e rolando o corpo como um rolo que não sai do lugar, ir subindo o corpo apoiando na pilastra e fazer a mesma ação de deslizar pela pilastra até o chão, mas, dessa vez, deslizando pelo chão em direção a área das árvores (parte de trás do prédio de F.E.) e caindo na terra (fora e abaixo do chão do corredor que rodeia o prédio da F.E.)

   2.    Pedras grandes atrás do prédio da Faculdade de Educação:
Ações: Luis
- Começou em cima de uma caixa-gaiola amarela, ao lado do corredor da F.E., que protege um registro de consumo de água. Agachado como um pássaro pousado ali, olhando para o espaço à sua frente.
- Salta para o chão e vai para a área das pedras e deita sobre uma delas (barriga para baixo) e flexiona os joelhos (pés para cima), corpo que tenta se apoiar e levantar do contato com a pedra, mas que retorna a ela, evidenciando uma tensão entre corpo e pedra, uma dependência do corpo à pedra, mas ao mesmo tempo tentando sair dela.
- Vai para outra pedra e troca de posição do corpo em relação à pedra, outra imagem, e vai para outra pedra e outra imagem. Aos poucos vai se levantando, tirando o tronco do corpo do contato com a pedra.
- Senta-se na pedra com as pernas encaixadas na pedra e ressalta a distância entre os pés e o chão e as linhas da pedra que se encaixam com as linhas das pernas. Suspende os braços abertos ao lado do corpo e move as mãos e o tronco a partir dessa suspensão do corpo mais afastado da pedra.
- Volta a se deitar na pedra, dessa vez com a barriga para cima e tomando um banho de sol, repousando na pedra.

   3.    Árvores atrás do prédio:
Ações: Raoni
- Caminhar com mãos e pés pelas raízes da árvore (jogo de equilíbrio).
- Tentar subir em uma das árvores, mas ao mesmo tempo não machucá-la, não destruí-la. A árvore é bem grossa e alta e difícil de subir. Experimentei modos de ir me pendurando e tentando subir na árvore, mas sem sucesso. Muito esforço e pouco resultado, vez ou outra caio e recomeço. Apesar das muitas dificuldades, fui encontrando maneiras de ir e pendurando na árvore e subindo, ainda que pouco.

4.    Frente do Centro de Excelência em Turismo (pátio com chão de pedras iguais, formando outro padrão):
Área ampla. O vento foi um estímulo forte, junto a amplitude da área sombreada por duas árvores. As ações evidenciaram essa amplitude do espaço, o corpo fazendo ações grandes, leves e com o peso mais solto. Saltos e lançamentos do corpo pelo espaço.
- Duas árvores (mangueiras): Luis
Se pendurando no galho da mangueira, balançando e se lançando pelo espaço.
- Área sombreada pelas duas árvores: Raoni
Saltando e lançando o corpo pela área sombreada, circulando a área e evidenciando o desenho desse sombreado no chão.
- Jardim lateral de flores: Raoni
Se movendo sentado, ou em posição de mesa (mãos e pés no chão e barriga para cima), ressaltando o plano, o espaço embaixo das plantas, um espaço comprido e baixo, um corredor e o corpo se movendo nesse corredor.

   5.    Rampa e escada no Centro de Excelência em Turismo (Parte mais interna):
Ações: Raoni
            - Deitando o corpo na lateral da rampa (espécie de corrimão baixo), evidenciando esse espaço estreito com o corpo, deitado de comprido. Estar em uma posição e ir pesando o corpo para o lado até cair do corrimão da rampa de frente para o chão. Volto rápido e deito novamente em outra posição, peso novamente e caio de novo, volto outra vez e dessa vez caio para dentro da rampa.
            - Vou encaixando o corpo na área da rampa, experimentando as formas de colocar o corpo naquela área. Experimentei movimentos que usassem somente um plano do espaço, o plano horizontal, ou seja, largura e profundidade, sem usar a altura, como se o corpo estivesse chapado no chão.
            - Dar cambalhotas e rolar rampa abaixo.
            Ações: Luis

            - Deitar o corpo na escada.

quarta-feira, 17 de maio de 2017

2º e 3º Ensaio

Esses dois ensaios não foram filmados, nem fotografados, porque achamos que seria mais produtivo primeiro experimentarmos os espaços sem a interferência da câmera e, depois, selecionarmos, organizarmos e daí sim gravarmos o material para apresentar no blog.

2º Ensaio: 15/05/2017
- Estudamos possíveis trajetos para a caminhada-performance, todas saindo do prédio de Artes Cênicas.
-Rediscutimos sobre uma primeira ação, de encontro entre os participantes. Utilizar um dispositivo para eles se procurarem pelo espaço e se encontrarem.
- Definimos três trajetos:
1. Vai para o Restaurante Universitário e para o ICC (fiz este trajeto sozinho, de onde veio o 1º Roteiro)
2. Vai para a Faculdade de Educação e Centro de Excelência em Turismo;
3. Vai para a frente do Núcleo de Dança, passa pelo Anfiteatro de Música e vai até a Faculdade de Tecnologia (trajeto que fizemos no 1º Ensaio).

3º Ensaio: 16/05/2017
- Fizemos o trajeto 2.
- Percebemos que há nele muitas possibilidades.
- Em frente ao Prédio de Artes Cênicas, do outro lado da rua, há uma quadra de futebol e depois um grande bambuzal.
1. Bambuzal: Ao caminhar por dentro do bambuzal escutamos o som das folhas sendo pisoteadas e quebrando. O chão ali era fofo para os pés, por causa das muitas camadas de folhas secas. Essas folhas estavam misturadas com cascas dos bambus. As cascas tem um formato cilíndrico e as encaixamos nos braços. Seguimos até o prédio da Faculdade de Educação;
2. Prédio da Faculdade de Educação (FE): vimos um gato que descansava na grama. Atravessamos por dentro do prédio, por um grande corredor. Vimos que no meio desse prédio há uma abertura de vidro, onde, por uma grade é possível ver o lado de fora. Esse pode ser um ponto de vista para o público ver algo, um jogo entre dentro e fora do prédio. Passamos então ao prédio mais ao fundo, o chão todo de mármore branco e liso. O prédio é todo rodeado de corredores e há, nas laterais, uma enorme persiana de alumínio (com mais partes faltando do que funcionando), criando enormes molduras para fora do prédio, uma área de transição até a L2, com gramado e árvores. Muitas trilhas pelos gramados e pela terra. Fomos para a parte de trás desse prédio, onde há muitas árvores e uma grande área de grama.
3. Atrás do Prédio da FE: Essa área se parece com a parte da frente do Núcleo de música, porém mais aberta. Lá há também um buraco, tal qual do 1º Roteiro, e estava marcado com um enorme galho de árvore saindo dele, para avisar quem passasse por ali. Seguimos para o Turismo.
4. Centro de Excelência em Turismo: Algumas árvores mais baixas na entrada dessa área, o chão todo com peças de concreto, uma ao lado da outra, um padrão. Envolta das peças que estão bem embaixo das árvores cresceu um lodo verde, contornando o concreto e criando uma delimitação no chão. Em meio a um pátio na entrada, há uma enorme grade no chão. Nos abaixamos e olhamos para dentro dela. Devido a claridade do sol, nosso olhar demorou a perceber aquele espaço, conforme se adaptava à falta de luz lá dentro. Aos poucos fomos enxergando e vimos que é uma enorme área subterrânea, com galerias para vários lados. Fomos surpreendidos, pois a área que há lá embaixo é muito maior do que a grade que vimos primeiro. Lembramos que será noite e que esse efeito visual não ocorrerá. Mas pensamos em trazer lanternas e, nesse momento, passarmos entre nós e irmos observando essa área e localizando objetos lá embaixo com o foco da luz. Logo na chegada reparamos as grandes vigas de madeira que sustentam as paredes da construção, muito de madeira e vidro. As vigas de madeira tem sulcos muito profundos e que a circundam, onde encaixamos nossos braços. Ao nosso lado, um grande salão todo rodeado de vidro e dentro dele, o chão de madeira e o teto, um enorme teto de madeira com desenhos triangulares, todo recortado. Improvisamos alguns movimentos a partir desse teto, no intuito de enfatizar seus recortes e sua amplitude a partir dos nossos movimentos. Continuamos circulando ao redor dessa construção. e chegamos a uma lateral que tem um grande balcão de granito polido liso e frio, que parece ser um beiral de enfeite desse salão, abaixo dele tem um corredor, que corre paralelo a esse balcão e que tem uma área que cabe uma pessoa curvada. Improvisamos um pouco a partir das sensações do granito liso e frio nas costas, um movimento de tocar e destocar partes do corpo estando deitado de costas no granito e um movimento de deslizar o corpo pelo balcão. Na parte de baixo, um movimento de andar com as costas curvadas. Achamos interessante esses planos paralelos (em cima e e baixo do balcão de granito). Ao final desse trecho há um buraco que dá visão para uma enorme área subterrânea que sustenta o grande salão de madeira e vidro. Uma área cheia de enormes vigas de madeira, criando toda uma estrutura e grandes vazios. Agachamos e a abertura ficou bem na altura dos nossos olhos, uma certa sensação tal qual quando vamos a um lugar muito alto, mas sem ter subido em nenhum lugar alto. Peguei uma pedrinha e joguei para dentro do vão e escutamos o barulho, imaginando a profundidade do lugar. Pensamos que essa pode ser outra ação coletiva interessante para propormos ao grupo da caminhada.
5. Prédio ao lado do Centro de Excelência em Turismo (Prédio circular: metade construído e metade em construção): Espaço circular sustentado por enormes colunas de concreto retangulares. Uma enorme passarela entre terra e concreto preenche o chão. Ao centro, os espaços se olham, o construído e o em construção. Um jardim no círculo no meio desses espaços. Ações como correr e se esconder atrás das vigas de concreto. á também duas escadas: uma de concreto, interditada por estar inacabada, e uma azul de ferro que fica no meio da passarela e que dá acesso ao segundo piso da construção. Saindo dali seguimos para o prédio ao lado.
6. Ao lado do Prédio Circular: Um prédio muito curioso, todo de ferro, concreto e vidro. Uma estrutura toda de ferro. O teto é mais baixo e também é de ferro. Nos penduramos nas vigas do teto com os braços e nossos pés quase tocam o chão. Parecia que estávamos num parquinho infantil. A cor que predomina é um azul, as tem também vermelho e amarelo. Há um banco de concreto individual, menor do que os que normalmente vemos, que parecia compor com o espaço. No meio do espaço uma grande rampa dando acesso ao segundo piso, o chão emborrachado. Pensamos em um de nós vir rolando por essa rampa. Saindo dessa prédio passamos pela lateral do Prédio onde fica a Pós-graduação em Artes Cênicas.
7. Lateral do Prédio da Pós-graduação em Artes Cênicas: caminhamos por um corredor estreito ao lado do prédio, área onde se abrem as janelas. Imaginamos que se estivéssemos em grupo teríamos de caminhar um atrás do outro e cuidar para desviarmos das janelas abertas. Ao final desse corredor paramos e olhamos para o lado da rua e vimos que estávamos ao lado, em paralelo, a uma grande fila que se formava do outro lado no ponto de ônibus e isso nos trouxe uma conexão com nós ali, num corredor estreito, um atrás do outro.

terça-feira, 9 de maio de 2017

1º Ensaio - Experimento nº 1

Caminhadas pela cidade
1º Ensaio: 04/07/2017

Fotos das experimentações: Lugares e Ações:

1. Lugar: Atrás do Prédio de Artes Cênicas / Ações: Desbarrancar, rolar rampa abaixo, em contato com a terra e com as paredes, corpo entre paredes.








2. L: Passagem próxima ao Prédio de Artes Cênicas/ A: Deitar e rolar a partir da sensações provocadas pelo contato da grade com a pele, pela delimitação do espaço do corredor e pelas plantas ao lado.



3. L: Lateral do Prédio de Artes Cênicas, chão gradeado / A: Correr sem sair do lugar, enrijecer, balançar com os pés na grade e produzir sons.

4.      L: Em frente ao Núcleo de Dança (entre o Núcleo e o Departamento de Música) / A: Ocupar a sombra, dançar a luz sobre o corpo, aparecer e esconder.
5.      L: Ao lado do prédio de Artes Cênicas / A: Pendurar-se na árvore





Levantamentos:

Luis: Diferença entre o espaço mais próximo da Avenida, mais barulhento e com maior movimento de carros e ônibus, e o espaço da rua lateral que corta essa rua que vem da Avenida (L2) e que fica na lateral do prédio do Departamento de Artes Cênicas.
Raoni: Em alguns momentos a ação era mais de se colocar no espaço e ficar ali (sentado ou deitado). Perceber que aí já há movimento, tanto a ação de sentar, deitar, parar, quanto os micromovimentos que estão ocorrendo no corpo a partir desse contato com o espaço. Nesses momentos parece que a sensação desse contato com o espaço já me preenche, sem que eu tenha necessidade de fazer outras coisas.
Luis: O espaço mais afastado da avenida era mais silencioso, se sentiu mais calmo, percebeu que estava incomodado com o som da rua. Lembrou-se do quintal da infância, “a chácara”, onde passávamos nossas férias e brincávamos quando erámos crianças. Sentiu um espaço de contemplação, um banco de madeira embaixo de uma árvore de copa larga. Deitou-se e olhou pra cima.
Raoni: -- Deitamos, um em cada banco. Senti o corpo pesado, outro tempo, partes do corpo pesando e caindo do banco, braços. O céu, entrecortado pela copa da árvore, azulll e a lua. Depois cai minha cabeça do banco indo para o chão. Olhar invertido, ver o mundo de cabeça pra baixo, pelo menos uma vez por dia! Inversão da perspectiva pode ser mais investigado, para criar as ações e também para mudarmos a relação dos caminhantes-participantes com os espaços durante a caminhada-performance.
Raoni: Percebi que as improvisações com o espaço precisavam, em alguns momentos, de uma duração maior. Ficar ali, insistir em algumas coisas, passar mais tempo em contato com algum estímulo. E que, com o passar do tempo improvisando íamos mudando de ações, o que me levou a pensar: que ações fazemos em cada espaço? Quais as qualidades/especificidades de cada ação? Quanto tempo durava cada uma? O que nos levava a mudar de ação?
Por um lado quero abrir e ampliar as possibilidades de experimentações, sem restringir a pesquisa e criação, por outro, tenho alguns pontos já pensados (os três fragmentos de Heráclito e a ideia da performance como uma caminhada por alguns espaços pela cidade).
Penso também em ações que contraponham a ideia de um corpo civilizado, organizado, urbanizado, como: cair, tropeçar, escorregar (escorregar numa casca de banana), babar. Ações tidas como vergonhosas, ou ações não esperadas, nem previstas ou “permitidas” para um contexto.

Lugares e ações experimentados:
à Parede de azulejos lateral do prédio de Artes Cênicas (Vídeo 1):
- Luis:
- Chão gradeado.
- Azulejos ao fundo como painel de luzes da cidade, carros passando.
- som de carros e motos passando.
- Luis: Nós dois improvisamos com grades de ferro, em momento diferentes. Mas as espacialidades eram bem distintas. O Raoni em uma área mais fina, estreita, uma grade mais fina também, deitado e rolando partes do corpo para um lado e outro. Eu em uma área mais ampla, uma grade mais grossa, e enfiando os espaços entre as grades. Eu mais focado no balanço da grade no chão com o balanço do corpo e no som que fazia.
Raoni: Percebi que os seus dedos enfiados na grade provocaram uma corporeidade, um estado que essa sensação dos dedos provocou no corpo todo, isso foi interessante, no sentido de que trouxe aquele espaço pro corpo.
Luis: Os dedos era do nojo de enfiar os dedos ali na grade. “A gente não fica enfiando o dedo assim nas coisas em casa, no dia-a-dia”.
Raoni: Pensei que cada uma dessas ações tem uma qualidade específica, ou um princípio de movimento que podemos investigar mais e que cada uma dessas ações parece surgir de algum elemento ou característica que salta em nossa percepção a cada momento.
Poeira e pó, contato com a terra, seca, na boca, areia na boca. Enquanto movo em contato com a terra, vou secando a pele ao mesmo tempo que vou umedecendo, enquanto suo. O seco umedece e o úmido seca.

à Fundo do Departamento de Artes Cênicas, porta do Teatro Helena Barcelos (Fotos):
- Raoni:
- escada verde, rampa de terra na lateral em formato de corredor, níveis de espaço. Parte de concreto, parte de terra, parte de ferro da escada.
- corpo retorcido para diferentes direções. Corpo entrecortado para caber e ocupar o espaço da rampa de terra. Nível abaixo do asfalto, os carros passando sobre a cabeça.
- jogo das pernas utilizando um ponto de vista. Partes do corpo sob os azulejos. Querer grudar no espaço.

à Espaço das árvores (“floresta”) (Vídeo 2):
- Luis:
- escuridão. Sombrio.
- atmosferas.
- sombras e luzes no chão.
- Aparecer e esconder, misturar-se com a escuridão.

à Espaço do Anfiteatro (próximo ao Departamento de Música):
- pessoas, receio de se aproximar. Fomos mais lento, mais entrando no espaço aos poucos.
- medo do medo que pode gerar nos outros. Medo de acharem que estou passando mal (medo de causar preocupação no outro, de atrapalhá-lo). Medo de acharem que eu possa fazer algum mal.
- Clarão após escuro.
- Quadrado de luz forte. Depois de ficar um tempo na escuridão, o espaço parece uma caixa de luz branca que ofusca e brilha.
- caminhamos apressadamente passando bem próximo as paredes do espaço, às vezes nos cruzando, às vezes não, pois eram cerca de 4 paredes e em cada momento estávamos passando por uma delas. Parecia que estávamos em uma porta giratória sem fim.
- Paredes iguais, com intervalos iguais e brancas.
- Ações: passar, atravessar, andar de um lado pra outro, escorregar na parede e da parede, e apoiar, apoiar escorregando. Deslizar partes do corpo na parede e chão.

Materiais que fomos encontrando pelo caminho:
- Sacola de papel de sanduíche do Mc Donald´s amassada.
- Pedaço de ferro pesado e enferrujado que encaixava no pé e no antebraço.
- pedaço de arame fino e leve.
- sacolas de plástico do mercado Big Box.

Lugares possíveis para filmar:
(Alguns vídeos curtos serão projetados em alguns dos espaços do trajeto)
- Em frente para a lateral do prédio de Artes Cênicas: por ser todo de vidro, no fim da tarde aparecem muitos espelhamentos, na lateral do prédio. Pode ser interessante gravar nós só andando. Filmarmos o vidro e a pessoa refletida passando e dançando.
- Caixa branca de luz e paredes (Próximo ao Departamento de Música): dependendo do ângulo, as paredes parecem juntas e não dá para ver o espaço entre elas e, assim, não daria para ver de onde vem o corpo, só os corpos, partes deles aparecendo ou sumindo nas paredes.
- Trilhas do/no chão (diferentes linhas que se pode seguir pelo chão, inventando um trajeto): gravar caminhando olhando pro chão, seguindo trilhas diferentes e fazendo paradas para mostrar objetos compridos e altos (caminho do olhar do chão ao céu), por exemplo, um poste, uma sombra comprida projetada na grama e continuando no muro de metal, uma árvore.
- Mar de carros, caminhar com a câmera em um estacionamento cheio na UnB, entre os carros de modo que só se veja os carros e as trilhas entre eles. Fechar o quadro para ver somente carros.

Pontos a pensar:
- já será noite.
- Ações de deitar, ficar agachado, esfregar os sapatos na superfícies (de ferro, de terra, de pedra, de terra e pedra, de grama, de asfalto, de folhas secas). Como a ação dos pés afeta o corpo todo? Como ressaltar esses sons dos passos? Pensei em experimentar diferentes marchas: caminhar batendo os pés no chão, algum dispositivo para caminharmos mais lento, ou mais atentos as sonoridades.
- Base de ferro que encaixava no sapato e no antebraço. Podemos ir compondo uma figura ao longo do caminho, com objetos da rua, ou objetos que façam parte da caminhada. Pé de ferro faz barulho arrastando no asfalto, interessante.
- Foi interessante dançar com as coisas que estávamos carregando e com as que fomos encontrando, esse ser que carrega coisas penduradas no corpo.
- Ações que impliquem um uso dos apoios. Ações como apoiar, se deslocar encostado nas coisas com o peso do corpo nas coisas.
- caminhar num mesmo trajeto várias vezes, mudando pequenas trajetórias. Uso da repetição para evidenciar os padrões.
- ações: eu rolando num espaço estreito sem sair dele; Luis cavalgando com as pernas (dando coices) nos quatro apoios sobre a grade de ferro); nós dois pendurados nos bancos de madeira, caindo e ficando de ponta cabeça.
- secura da terra, coceira da grama, umidade do suor, corpo em ação.
- pensei em esmiuçarmos mais os lugares, a partir dos elementos específicos de cada espaço e dos estímulos que chegam aos sentidos do corpo.
- e também, de ir agregando as ações e sensações experimentadas em um espaço até segmentar mais o corpo nessas ações e sensações. Ir incorporando as espacialidades de um mesmo lugar e ao mesmo tempo compondo um corpo de retalhos, a partir desses espaços que incorpora.
- cada espaço parece ter uma certa regularidade de alguns elementos, muitas vezes é a superfície, o chão de terra, ou revestido de pisos, ou as árvores, ou paredes, ou pilastras, vasos de flores. O que define um espaço? Um certo enquadramento do olhar, um modo de ver em um recorte espacial uma composição, que, de algum modo, o evidencie como um lugar. Por isso o espaço é um conjunto heterogêneo de fragmentos, diferentes espacialidades que se justapõe. E, se pensarmos nos múltiplos estratos de tempo que se adensam para a formação de um espaço, desde as vidas que atravessaram esse espaço ao longo de todo processo de transformação dele, até os tratamentos e usos dados a terra, passando pelas fundações e sedimentações de concreto, e pelas reformas e modificações de uma construção física.

Sermos mais objetivos:
- definir um trajeto e espaços específicos para nos aprofundarmos. Que saia do Departamento de Artes Cênicas ou que chegue no Departamento de Artes Cênicas, ou que saia de lá e volte pra lá.
- em quinze minutos quantos lugares dá para passarmos? 4 ou 5 no máximo
- estudar as camadas do espaço: que lugar é esse, feito de que material, como é definido social e culturalmente, como é utilizado no dia-a-dia, quais os padrões visuais, sonoros que apresenta?
- talvez ir e voltar pelo mesmo caminho.

Ideias para a caminhada coletiva:
(Ações propostas para o grupo da caminhada)
Resolvi retirar esta parte do texto porque algumas ideias que tenho pensado dependem da surpresa de não se saber o que irá ocorrer, mas ao mesmo tempo fico sem conseguir compartilhar com vocês...

Percebo três roteiros que se unem: um roteiro da caminhada e de jogos e ações na caminhada em grupo, o grupo como um espaço; um roteiro das ações que eu e Luis proporemos em alguns espaços; e um roteiro dos vídeos curtos que irão compor a performance através de projeções.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Nova seleção dos fragmentos de Heráclito

Fragmentos selecionados a partir do livro:
KAHN, Charles. A Arte e o pensamento de Heráclito. São Paulo: Paulus, 2009.

·         Fragmento 116:
“Não fosse Dionísio pelo qual marcham em procissão e cantam o hino ao falo, suas ações poderiam ser vergonhosas. Mas Hades e Dionísio são o mesmo, por quem deliram e celebram a Lenaia.”

Notas de rodapé:
- Falo: aidoia, rafe pudenda, genitália
- Hades: deus dos mortos
- Lenaia: festival dedicado a Dionísio, provavelmente caracterizado por danças frenéticas ou loucura ritual. O hino e a procissão ao falo se referem a um outro festival em honra do deus do vinho.
Comentários:
- No artigo “Heráclito e os eventos performativos” Marcus Mota (2010) analisa três fragmentos de Heráclito que tem referências a eventos que se organizam performativamente. Um desses fragmentos trata de uma procissão religiosa, sendo o aqui selecionado (116, que para Mota é o 15 - seguindo numeração da edição Diehls-Kraz). Os outros dois analisados são o 104, a respeito da arte do rapsodo e o 101, que se vincula a uma assembléia política.

- Mota considera três elementos em comum que aparecem nesses fragmentos e possibilitam a definição como eventos performativamente orientados: o ajuntamento de pessoas, a reunião dessas pessoas em função de algo e a realização de atos que se efetivam nesse encontro.
- Analisando o fragmento que trata do ritual religioso, Mota considera que se trata de um grupo de cultuantes que engaja-se nos atos de uma celebração religiosa: caracterizando um sujeito coletivo dos atos e que em primeiro plano estão as funções exercidas por este grupamento em função do ritual;

- Mota fala do deslocamento físico inscrevendo os corpos dos cultuantes na participação ritual durante a procissão. Fala também da ida em direção ao lugar dos sacrifícios.
“O deslocamento físico inscreve os corpos dos cultuantes na participação ritual. Ainda, seus corpos atravessam espaços públicos e abertos em direção ao lugar dos sacrifícios. Trata-se pois de um evento coletivo de grande magnitude, que sobrepõe aos caminhos da cidade uma outra trilha, revisando a geografia da cidade” (p. 98)

- Fala também dos atos de excessão que o ritual mobiliza:
“Essa passagem do habitual para o extraordinário movimenta atos de excessão: o espaço é tomado por pessoas que se integram em função do que o ritual demanda.” (p. 98)

- No fragmento analisado por Mota, a procissão ritual provoca uma mudança nos modos de agir, uma transformação que se dá no vestir, no andar e no uso da voz. A caminhada como produção/prática estética está ligada também a outras dimensões do ritual (música, canto e som), e também a dimensão multissensorial, a estimulação e ampliação da percepção de outros sentidos do corpo. Lembro que os cultuantes a Dionísio bebiam e também passavam misturas ao corpo, conhecidas como libações. Penso em outros modos de relação com o próprio corpo e com os espaços da cidade ao longo da caminhada. Deleuze fala de um espaço háptico, que estaria mais ligado a dimensão tátil. Penso em como provocar as pessoas a experimentarem os lugares de outras maneiras e também levar atenção aos outros sentidos do corpo.

“Para tanto, elas modificam seus modos de agir, e passam a se vestir, andar e usar a voz de outra maneira. A procissão não é apenas uma caminhada. Ela está indissoluvelmente conectada, a outras dimensões do ritual: à música, ao canto, aos sons, que, emitidos pelos celebrantes e pelos musicistas que acompanham o evento, multiplicam a presença física desse agrupamento na cidade e orientam ritmicamente as interações dos partícipes. A dimensão sonora, que complementa e esclarece o deslocamento da multidão, é bem marcada no texto (...)” (p. 98)

“Além disso, essa íntima conexão entre procissão e canção, entre o movimento dos pés e o da boca nos situa diante da dança, e não simplesmente de relações palavra-música. A canção entoada não se resume à voz e à linguagem verbal. Cantando em movimento, os cultuantes se vêem impelidos a participar totalmente daquilo que celebram, com todas as possibilidades de seus corpos. Essa multidão de pessoas cantando e dançando é o suporte de uma ampla exposição de si mesmas e dos atributos do deus que festejam.” (p. 98/99)

- Movimento rítmico coletivo:
- A ausência de uma clara distinção entre dança e possessão e outras formas de movimento ritual nos encoraja a ampliar a definição de dança grega por considerar movimento rítmico como outra forma de comportamento comunal combinado com atos de sacrifício e beber vinho.  Como uma categoria de jogo ritual, a dança deve ser considerada como operando dentro do contexto particular dos festivais e encontros. Embora a dance incorpore movimentos do mundo do dia-a-dia, ela assume o modelo divino e, portanto, funciona de acordo com regras que são fundamentalmente diferentes daquelas que interpretam o comportamento fora deste contexto.

- Questões:
- Cantando em movimento;
- Todas as possibilidades de seus corpos;
- A multidão como suporte de uma ampla exposição de si e dos atributos de Dionísio;
- Quais os atributos desse deus? Como experimentar esses atributos no movimento e ações? Como experimentar a exposição de si também?
- O que fazemos em multidão e em situações performativas, celebrativas, rituais?

- No Fragmento fala de ações vergonhosas (as coisas mais vergonhosas): o que te envergonha ou o que você faz que te envergonha (o que você faz quando ninguém vê, ou o que faria sozinho mas não em público?)

- Mota fala de um entrechoque que aparece no fragmento entre as dimensões ordinária e extraordinária, entre aquilo que é realizado nos rituais e a esfera cotidiana da vida (p. 99)

- Contraposição só é possível pela presença comum de um grupo de pessoas nas duas situações em confronto: os que performam os rituais e os que agem no cotidiano;

“O entrechoque entre as situações mostra que não é o que os grupos fazem o que determina a censura e sim a estrutura do acontecimento ao qual vinculam seus atos. As mesmas pessoas fazem as mesmas coisas em contextos diversos. No entanto, nem o que fazem, nem o que são é o mesmo em virtude da ocasião de performance. Cantar, dançar e cantar segurando um falo pelas ruas pode ser permitido e suportável a partir do momento que esses atos integrem um programa de atividades de determinado evento” (p. 99, 100).

- Porque minha ideia é jogar com esses choques entre contextos privado, público, cotidiano, artístico, os limites entre esses contextos. Entre o permitido e o suportável.

- Ideia: pegar trechos de discursos jurídicos, médicos, religiosos e educacionais que tratam do corpo.

“Antes, procura demonstrar em concisa expressão verbal a amplitude daquilo que se mostra diante de seus olhos e ouvidos: o comportamento das pessoas configura-se como resposta a expectativas de padrões presentes no arranjo dos eventos, padrões estes que possibilitam as condições de participação. Essa lógica comportamental, embora específica em cada arranjo, melhor se evidencia quando comparada a outros arranjos. Pois a compreensão da construtividade de uma lógica comportamental se faz possível pelo entendimento de sua inclusão no todo social, na copresença de outros modos de agir e outras formas de participação.” (p. 100).

- Que deuses celebramos ou podemos celebrar hoje?
- A cidade, o corpo, a natureza, as relações, os sentidos? Ou as fissuras das normatividades, das percepções hegemônicas, das ordens físicas, sociais, morais, urbanas, espaciais e arquitetônicas que orientam a vida nas cidades atuais?

- Sobre esse fragmento Charles Kahn fala da identificação entre Dionísio e Hades:
“O que Heráclito quer dizer com a identificação entre Dionísio e Hades, e entre o culto do falo e o frenesi báquico? A declaração é um enigma, e por isso devemos nos satisfazer com soluções de caráter parcial” (p. 414)
Nota de rodapé (p. 414):
“(...) Heródoto transmite como uma peculiaridade da religião egípcia o fato de, nesse país se atribuir a Dionísio (i.e. Osíris) o título de rei dos mortos. O sarcasmo do fragmento CXVI implica que os homens não reconhecem a propriedade do ritual fálico realizado em sua homenagem, que repousa precisamente sobre essa identificação” (p. 414)
- Equivalência entre vida e morte:
“A interpretação correta mais óbvia do fragmento toma Hades como representando a morte e o fálico Dionísio como um representante da vitalidade sexual. Entendido desse modo, o enigma reformula a equivalência (i.e. a intercambialidade) da vida e da morte expressa em XCII e XCIII.” (p. 415)
- Atividade sexual como desperdício da psique e embriaguez como morte parcial:
Uma segunda leitura, mais profunda, entende Dionísio não apenas como o deus da vitalidade e da procriação, mas também da bebida e da loucura. Mais atrás eu sugeri que o fragmento XCVIII oferece um retrato da atividade sexual como um desperdício de psique, um gasto de força vital liquefeito como sêmen, assim como a embriaguez é uma morte parcial e um obscurecimento da alma por liquefação (CVI). A “morte” da ´psique pelo “nascimento” do fluido na ejaculação coincide, no longo prazo, com o nascimento do filho destinado a suplantar o pai. Assim, o desejo dos homens “de viver... e deixar filhos atrás de si” passa a ser realmente um desejo pela própria morte e substituição” (p. 415)
- Identificação entre o deus da sexualidade e o deus da morte:
“A identificação do deus da sexualidade com o deus da mote, reforçada pelo jogo com a palavra “vergonha”, “hino fálico”, “falta de vergonha”, e Hades, reafirma em forma simbólica o desprezo pela vida e pela morte de homens se fartam como gados (XCVII). O que é novo no fragmento CXVI é a caracterização do deus fálico em termos de loucura ritual (p. 415)
- A loucura ritual:
“A Lenaia aparece no contexto como um festival marcado pelo frenesi báquico, não uma simples festa do vinho (...). Dionísio é o deus do vinho; mas o texto não faz qualquer menção a vinho ou embriaguez. A ideia central do fragmento reside na referência à loucura ritual como uma explicação da identidade de Dionísio com Hades. O comentário final sobre a adoração fálica seria, assim, o pensamento expresso em CXVII: “Qualquer um que visse (ou observasse) alguém procedendo assim pensaria que era louco”. Um observador perceptivo da mania ritual, reconhecendo-a como mera insanidade, veria a propriedade de adorar deus da sensualidade e da procriação como atos de loucura.” (p. 416)
“Trata-se da verdadeira falta de (bom) senso e do autêntico esquecimento de si, “não saber o que se faz quando acordado, assim como os homens se esquece do que fazem durante o sono”, desperdiçar a própria psique na satisfação dos apetites sexuais ou obscurece-la com a loucura (e nós acrescentaríamos: com o uso de drogas); não se dando conta de que aquilo que, aos olhos do vulgo, possa ser o cúmulo da vitalidade nada mais é que a procura da morte”. (p. 416)
- A lucidez:
“O que o preocupa é nem tanto a ação ou abstenção, mas a lucidez: saber o que estamos fazendo. Seres humanos, nós nos saciamos como animais; queremos ver nossos filhos crescerem e sobreviver a nós (além disso, também perdemos o controle de nós mesmos nos momentos de raiva e ocasionalmente umedecemos as nossas almas com bebida). (416/417). Heráclito não está clamando por algum tipo de reforma ascética da existência humana na qual essas coisas deveriam desaparecer. Nossa condição é de mortalidade e Heráclito não nos oferece nenhuma saída. O que ele oferece é um insight sobre essa condição, o reconhecimento das tendências mortais no interior da própria vida, e a admiração por aqueles poucos homens cuja visão é iluminada pela sabedoria. Pois eles olharam para além do destino cíclico que em todo caso deve ser o nosso, escolhendo “uma única coisa em troca de tudo” -  a luz da sabedoria simbolizada e encarnada no raio de fogo cósmico” (p. 417).
- Lembrei do filme “Amarelo Manga” e da frase: “o homem é sexo e estômago”.
- Condição de mortalidade:
“Não se trata de um incentivo ao suicídio mas à aceitação da morte, a sua própria morte e a morte daqueles que lhe são caros, com a coragem e a paz de espírito que vêm da amarga sabedoria” (p. 417).
- Duplo sentido de aidos: como vergonha e reverência:
“O jogo de palavras que está no centro do fragmento CXVI demanda algum comentário. A identificação entre Dionísio e Hades, fertilidade e insanidade, é mediada por conexões verbais entre os genitais (aidoia), vergonha (aidos), falta de vergonha (anaidestata) e Hades (Aidès). O falo sagrado é designado como “partes pudendas”, objetos de vergonha ou modéstia (aidoia). Mesmo com todo o deleito que os gregos demonstravam ter na nudez masculina em suas obras de arte, na vida real a genitália ficava normalmente coberta; e a exibição pública de um pênis ereto seria provavelmente uma fonte de zombaria, senão de vergonha mesmo, como algumas anedotas transmitidas na Lisístrata de Aristófanes deixa claro. Daí o paradoxo, expresso no duplo sentido de aidos (“vergonha”, mas também “reverência”) implicado no fato de a exibição de um falo gigante de forma marcadamente exagerada ser tratada não como vergonha, mas com reverência e respeito. As canções obscenas e a procissão solene passariam, assim, a denotar atos de uma extrema falta de vergonha – anadeistata -, não fossem elas realizadas em nome de Dionísio. (...) O que evita que o seu comportamento seja ultrajante a seus próprios olhos é precisamente a identidade entre Dionísio e “o que não é visto” (Aidés), o deus da morte. Compare-se o texto com o fragmento CXI: “As almas farejam no Aidés, no lugar onde elas não podem ver. (p. 418).

·         Fragmento 103:
“O caminho para cima e o caminho para baixo são um e o mesmo” (p. 98)
Comentários:
Charles Kahn: “Eu coloquei o texto nesse lugar para que ele servisse como um comentário sobre o destino cíclico da psique definido como uma passagem por formas elementais a mesmo tempo superiores e inferiores. Ambas as interpretações, psicológica e elemental do fragmento CII encontram-se bem atestadas nos comentários antigos. E não há qualquer necessidade de escolher entre elas, uma vez que os elementos e a psique são apenas diferentes fases ou de uma única realidade, acender e apagar do fogo cósmico” (p. 374)
“Há ainda uma interpretação bem mais literal” (p. 374)
- A partir dessa interpretação literal o caminho tem a ver com o ponto de vista de quem percorre, depende da posição do corpo em relação ao caminho.
- Charles Kahn fala sobre esse fragmento ao analisar outro fragmento, o 102.

·         Fragmento 102:
“Para as almas (psychai) é morte tornar-se (ou nascer como) água, para a água é morte tornar-se terra; da terra surge (nasce) a água, e da água a alma (psyché).
Comentários:
- Kahn comenta o fato de ser esse mais uma composição circular de Heráclito, que acaba onde começou com a palavra psyché. Comenta ainda da passagem do plural (psychai) ao singular (psyché).
“A forma no plural (...) sugere a referência à alma ou sopro vital dos homens individuais, que, na crença popular, abandona o corpo na morte e passa como um fantasma para o mundo subterrâneo. Mas a forma singular aponta para a psyché como um elemento constitutivo da ordem natural, como a terra ou a água (...). Desse modo, Heráclito substitui o retrato homérico da descida das pschai humanas para o submundo pela sua própria versão do caminho elemental “para baixo”, em direção, sucessivamente, à água e à terra, e em seguida os mesmos estágios são repetidos em ordem inversa, como “caminho para cima” (p. 370).
“Apenas a transição para cima na direção da água p e da terra é descrita como morte (assim como nascimento); o retorno para cima é descrito apenas como nascimento ou vir a ser” (p. 370)
“Na medida em que os caminhos para cima e para baixo são “um e o mesmo”, todo nascimento também pode ser descrito como morte. Mas há ainda um outro sentido no qual o caminho para baixo é mais verdadeiramente o caminho da mortalidade, o apagar do fogo, enquanto o caminho para cima é, nesse mesmo sentido, o caminho da vida e do reacendimento” (p. 370)
- A psyché está ligada as transformações físicas e aos ciclos dos elementais:
“O que é novo (...) é a descrição dessa transições em termos de morte e nascimento, e a presença da psyché no princípio e no fim da série. Esses dois pontos estão relacionados entre si. Para Heráclito tudo é um forma de vida, e não pode haver nenhuma descontinuidade fundamental entre o reino da psyché e o das transformações elementais. O fragmento CII deixa isso bastante claro ao integrar a psyché no interior de uma série de transformações físicas”.

·         Fragmento 106:
“Um homem quando bêbado é conduzido por um rapaz imberbe, cambaleando, sem perceber para onde vai, tendo a alma úmida” (p. 99)
Alma: espírito vital ou vitalidade. (p.99)
Alma: psyché, sopro de vida, vida; espírito, fantasma; espírito, alma. (p. 72)
Comentários:
“(...) referência à dissolução psíquica ou “morte” parcial no elemento líquido” (p. 380)
- Kahn aponta ressonância também com outros fragmentos, por exemplo, o que se refere a rapaz imberbe (anebos) o fragmento que diz que “deveriam ser enforcados até o último homem (Hebedon) e deixar a cidade para os garotos (aneboi)”; estes cidadão cambaleiam como bêbados, e um bêbado é pior que uma criança” (p. 380)
“Assim, de modo semelhante, o verbo epaion “(sem) perceber (por onde vai)”, ecoa por inversão a definição de temperança como “pensar bem””, sophronein em XXXII: “agir e falar... percebendo (epaiontes) as coisas de acordo com sua natureza”. (p. 380)
“Como assinala Bollack-Wismann, as construções em particípio desenvolvem uma espécie de análise causal em três estágios: o homem perdeu o controle de seu corpo, porque perdeu a sua percepção e porque a lucidez da sua psique foi enfraquecida pelos fluidos que ele ingeriu” (p. 380)

Deformar a percepção

Nas experimentações que estamos fazendo do corpo na cidade, temos pensado em duas coisas: - perceber/reconhecer os padrões do espaço pelo...