Fragmentos selecionados a partir do livro:
KAHN, Charles. A Arte e o pensamento de
Heráclito. São Paulo: Paulus, 2009.
·
Fragmento
116:
“Não
fosse Dionísio pelo qual marcham em procissão e cantam o hino ao falo, suas
ações poderiam ser vergonhosas. Mas Hades e Dionísio são o mesmo, por quem
deliram e celebram a Lenaia.”
Notas
de rodapé:
-
Falo: aidoia, rafe pudenda, genitália
-
Hades: deus dos mortos
-
Lenaia: festival dedicado a Dionísio, provavelmente caracterizado por danças
frenéticas ou loucura ritual. O hino e a procissão ao falo se referem a um
outro festival em honra do deus do vinho.
Comentários:
- No artigo “Heráclito
e os eventos performativos” Marcus Mota (2010) analisa três fragmentos de
Heráclito que tem referências a eventos que se organizam performativamente. Um
desses fragmentos trata de uma procissão religiosa, sendo o aqui selecionado
(116, que para Mota é o 15 - seguindo numeração da edição Diehls-Kraz). Os
outros dois analisados são o 104, a respeito da arte do rapsodo e o 101, que se
vincula a uma assembléia política.
- Mota considera três
elementos em comum que aparecem nesses fragmentos e possibilitam a
definição como eventos performativamente orientados: o ajuntamento de pessoas, a
reunião dessas pessoas em função de algo e a realização de atos que se efetivam
nesse encontro.
- Analisando o fragmento que
trata do ritual religioso, Mota considera que se trata de um grupo de
cultuantes que engaja-se nos atos de uma celebração religiosa: caracterizando
um sujeito coletivo dos atos e que em primeiro plano estão as funções exercidas
por este grupamento em função do ritual;
- Mota fala do deslocamento físico inscrevendo os
corpos dos cultuantes na participação ritual durante a procissão. Fala também
da ida em direção ao lugar dos sacrifícios.
“O deslocamento físico inscreve
os corpos dos cultuantes na participação ritual. Ainda, seus corpos atravessam
espaços públicos e abertos em direção ao lugar dos sacrifícios. Trata-se pois
de um evento coletivo de grande magnitude, que sobrepõe aos caminhos da cidade
uma outra trilha, revisando a geografia da cidade” (p. 98)
- Fala também dos atos de excessão que o ritual
mobiliza:
“Essa passagem do habitual para o
extraordinário movimenta atos de excessão: o espaço é tomado por pessoas que se
integram em função do que o ritual demanda.” (p. 98)
- No fragmento analisado por
Mota, a procissão ritual provoca uma mudança nos modos de agir, uma
transformação que se dá no vestir, no andar e no uso da voz. A caminhada como
produção/prática estética está ligada também a outras dimensões do ritual
(música, canto e som), e também a dimensão multissensorial, a estimulação e
ampliação da percepção de outros sentidos do corpo. Lembro que os cultuantes a
Dionísio bebiam e também passavam misturas ao corpo, conhecidas como libações.
Penso em outros modos de relação com o próprio corpo e com os espaços da cidade
ao longo da caminhada. Deleuze fala de um espaço háptico, que estaria mais
ligado a dimensão tátil. Penso em como provocar as pessoas a experimentarem os
lugares de outras maneiras e também levar atenção aos outros sentidos do corpo.
“Para tanto, elas modificam seus
modos de agir, e passam a se vestir, andar e usar a voz de outra maneira. A
procissão não é apenas uma caminhada. Ela está indissoluvelmente conectada, a
outras dimensões do ritual: à música, ao canto, aos sons, que, emitidos pelos
celebrantes e pelos musicistas que acompanham o evento, multiplicam a presença
física desse agrupamento na cidade e orientam ritmicamente as interações dos
partícipes. A dimensão sonora, que complementa e esclarece o deslocamento da
multidão, é bem marcada no texto (...)” (p. 98)
“Além disso, essa íntima
conexão entre procissão e canção, entre o movimento dos pés e o da boca
nos situa diante da dança, e não simplesmente de relações palavra-música. A
canção entoada não se resume à voz e à linguagem verbal. Cantando em movimento,
os cultuantes se vêem impelidos a participar totalmente daquilo que celebram,
com todas as possibilidades de seus corpos. Essa multidão de pessoas cantando e
dançando é o suporte de uma ampla exposição de si mesmas e dos atributos do
deus que festejam.” (p. 98/99)
- Movimento
rítmico coletivo:
- A ausência de uma clara distinção
entre dança e possessão e outras formas de movimento ritual nos encoraja a
ampliar a definição de dança grega por considerar movimento rítmico como outra
forma de comportamento comunal combinado com atos de sacrifício e beber
vinho. Como uma categoria de jogo
ritual, a dança deve ser considerada como operando dentro do contexto
particular dos festivais e encontros. Embora a dance incorpore movimentos do
mundo do dia-a-dia, ela assume o modelo divino e, portanto, funciona de acordo
com regras que são fundamentalmente diferentes daquelas que interpretam o comportamento
fora deste contexto.
- Questões:
- Cantando em movimento;
- Todas as possibilidades de seus
corpos;
- A multidão como suporte de uma
ampla exposição de si e dos atributos de Dionísio;
- Quais os atributos desse deus?
Como experimentar esses atributos no movimento e ações? Como experimentar a
exposição de si também?
- O que fazemos em multidão e em
situações performativas, celebrativas, rituais?
- No Fragmento fala de ações
vergonhosas (as coisas mais vergonhosas): o que te envergonha ou o que você faz
que te envergonha (o que você faz quando ninguém vê, ou o que faria sozinho mas
não em público?)
- Mota fala de um entrechoque que
aparece no fragmento entre as dimensões ordinária e extraordinária, entre aquilo
que é realizado nos rituais e a esfera cotidiana da vida (p. 99)
- Contraposição só é possível
pela presença comum de um grupo de pessoas nas duas situações em confronto: os
que performam os rituais e os que agem no cotidiano;
“O entrechoque entre as situações
mostra que não é o que os grupos fazem o que determina a censura e sim a
estrutura do acontecimento ao qual vinculam seus atos. As mesmas pessoas fazem
as mesmas coisas em contextos diversos. No entanto, nem o que fazem, nem o que
são é o mesmo em virtude da ocasião de performance. Cantar, dançar e cantar
segurando um falo pelas ruas pode ser permitido e suportável a partir do
momento que esses atos integrem um programa de atividades de determinado evento”
(p. 99, 100).
- Porque minha ideia é jogar com
esses choques entre contextos privado, público, cotidiano, artístico, os
limites entre esses contextos. Entre o permitido e o suportável.
- Ideia: pegar trechos de discursos jurídicos,
médicos, religiosos e educacionais que tratam do corpo.
“Antes, procura demonstrar em
concisa expressão verbal a amplitude daquilo que se mostra diante de seus olhos
e ouvidos: o comportamento das pessoas configura-se como resposta a
expectativas de padrões presentes no arranjo dos eventos, padrões estes que possibilitam
as condições de participação. Essa lógica comportamental, embora específica em
cada arranjo, melhor se evidencia quando comparada a outros arranjos. Pois a
compreensão da construtividade de uma lógica comportamental se faz possível
pelo entendimento de sua inclusão no todo social, na copresença de outros modos
de agir e outras formas de participação.” (p. 100).
- Que deuses celebramos ou
podemos celebrar hoje?
- A cidade, o corpo, a natureza,
as relações, os sentidos? Ou as fissuras das normatividades, das percepções
hegemônicas, das ordens físicas, sociais, morais, urbanas, espaciais e
arquitetônicas que orientam a vida nas cidades atuais?
-
Sobre esse fragmento Charles Kahn fala da identificação entre Dionísio e
Hades:
“O
que Heráclito quer dizer com a identificação entre Dionísio e Hades, e entre o
culto do falo e o frenesi báquico? A declaração é um enigma, e por isso devemos
nos satisfazer com soluções de caráter parcial” (p. 414)
Nota
de rodapé (p. 414):
“(...)
Heródoto transmite como uma peculiaridade da religião egípcia o fato de, nesse
país se atribuir a Dionísio (i.e. Osíris) o título de rei dos mortos. O
sarcasmo do fragmento CXVI implica que os homens não reconhecem a propriedade do ritual fálico realizado em sua
homenagem, que repousa precisamente sobre essa identificação” (p. 414)
- Equivalência
entre vida e morte:
“A
interpretação correta mais óbvia do fragmento toma Hades como representando a
morte e o fálico Dionísio como um representante da vitalidade sexual. Entendido
desse modo, o enigma reformula a equivalência (i.e. a intercambialidade) da
vida e da morte expressa em XCII e XCIII.” (p. 415)
- Atividade
sexual como desperdício da psique e embriaguez como morte parcial:
Uma
segunda leitura, mais profunda, entende Dionísio não apenas como o deus da
vitalidade e da procriação, mas também da bebida e da loucura. Mais atrás eu
sugeri que o fragmento XCVIII oferece um retrato da atividade sexual como um
desperdício de psique, um gasto de força vital liquefeito como sêmen, assim
como a embriaguez é uma morte parcial e um obscurecimento da alma por
liquefação (CVI). A “morte” da ´psique pelo “nascimento” do fluido na ejaculação
coincide, no longo prazo, com o nascimento do filho destinado a suplantar o
pai. Assim, o desejo dos homens “de viver... e deixar filhos atrás de si” passa
a ser realmente um desejo pela própria morte e substituição” (p. 415)
- Identificação
entre o deus da sexualidade e o deus da morte:
“A
identificação do deus da sexualidade com o deus da mote, reforçada pelo jogo
com a palavra “vergonha”, “hino fálico”, “falta de vergonha”, e Hades, reafirma
em forma simbólica o desprezo pela vida e pela morte de homens se fartam como
gados (XCVII). O que é novo no fragmento CXVI é a caracterização do deus fálico
em termos de loucura ritual (p. 415)
- A
loucura ritual:
“A
Lenaia aparece no contexto como um festival marcado pelo frenesi báquico, não
uma simples festa do vinho (...). Dionísio é o deus do vinho; mas o texto não
faz qualquer menção a vinho ou embriaguez. A ideia central do fragmento reside
na referência à loucura ritual como uma explicação da identidade de Dionísio
com Hades. O comentário final sobre a adoração fálica seria, assim, o
pensamento expresso em CXVII: “Qualquer um que visse (ou observasse) alguém procedendo assim pensaria que era louco”. Um
observador perceptivo da mania ritual,
reconhecendo-a como mera insanidade, veria a propriedade de adorar deus da
sensualidade e da procriação como atos de loucura.” (p. 416)
“Trata-se
da verdadeira falta de (bom) senso e do autêntico esquecimento de si, “não
saber o que se faz quando acordado, assim como os homens se esquece do que
fazem durante o sono”, desperdiçar a própria psique na satisfação dos apetites
sexuais ou obscurece-la com a loucura (e nós acrescentaríamos: com o uso de
drogas); não se dando conta de que aquilo que, aos olhos do vulgo, possa ser o
cúmulo da vitalidade nada mais é que a procura da morte”. (p. 416)
- A
lucidez:
“O
que o preocupa é nem tanto a ação ou abstenção, mas a lucidez: saber o que
estamos fazendo. Seres humanos, nós nos saciamos como animais; queremos ver
nossos filhos crescerem e sobreviver a nós (além disso, também perdemos o
controle de nós mesmos nos momentos de raiva e ocasionalmente umedecemos as
nossas almas com bebida). (416/417). Heráclito não está clamando por algum tipo
de reforma ascética da existência humana na qual essas coisas deveriam
desaparecer. Nossa condição é de mortalidade e Heráclito não nos oferece
nenhuma saída. O que ele oferece é um insight
sobre essa condição, o reconhecimento das tendências mortais no interior da
própria vida, e a admiração por aqueles poucos homens cuja visão é iluminada
pela sabedoria. Pois eles olharam para além do destino cíclico que em todo caso
deve ser o nosso, escolhendo “uma única coisa em troca de tudo” - a luz da sabedoria simbolizada e encarnada no
raio de fogo cósmico” (p. 417).
-
Lembrei do filme “Amarelo Manga” e da frase: “o homem é sexo e estômago”.
- Condição
de mortalidade:
“Não
se trata de um incentivo ao suicídio mas à aceitação da morte, a sua própria
morte e a morte daqueles que lhe são caros, com a coragem e a paz de espírito
que vêm da amarga sabedoria” (p. 417).
- Duplo
sentido de aidos: como vergonha e reverência:
“O
jogo de palavras que está no centro do fragmento CXVI demanda algum comentário.
A identificação entre Dionísio e Hades, fertilidade e insanidade, é mediada por
conexões verbais entre os genitais (aidoia),
vergonha (aidos), falta de vergonha (anaidestata) e Hades (Aidès). O falo sagrado é designado como
“partes pudendas”, objetos de vergonha ou modéstia (aidoia). Mesmo com todo o deleito que os gregos demonstravam ter na
nudez masculina em suas obras de arte, na vida real a genitália ficava
normalmente coberta; e a exibição pública de um pênis ereto seria provavelmente
uma fonte de zombaria, senão de vergonha mesmo, como algumas anedotas
transmitidas na Lisístrata de
Aristófanes deixa claro. Daí o paradoxo, expresso no duplo sentido de aidos (“vergonha”, mas também
“reverência”) implicado no fato de a exibição de um falo gigante de forma
marcadamente exagerada ser tratada não como vergonha, mas com reverência e
respeito. As canções obscenas e a procissão solene passariam, assim, a denotar
atos de uma extrema falta de vergonha – anadeistata
-, não fossem elas realizadas em nome de Dionísio. (...) O que evita que o seu
comportamento seja ultrajante a seus próprios olhos é precisamente a identidade
entre Dionísio e “o que não é visto” (Aidés),
o deus da morte. Compare-se o texto com o fragmento CXI: “As almas farejam no Aidés, no lugar onde elas não podem ver.
(p. 418).
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Fragmento
103:
“O caminho para cima e o caminho para
baixo são um e o mesmo” (p. 98)
Comentários:
Charles Kahn: “Eu coloquei o texto nesse
lugar para que ele servisse como um comentário sobre o destino cíclico da
psique definido como uma passagem por formas elementais a mesmo tempo
superiores e inferiores. Ambas as interpretações, psicológica e elemental do
fragmento CII encontram-se bem atestadas nos comentários antigos. E não há
qualquer necessidade de escolher entre elas, uma vez que os elementos e a
psique são apenas diferentes fases ou de uma única realidade, acender e apagar
do fogo cósmico” (p. 374)
“Há ainda uma interpretação bem mais
literal” (p. 374)
- A partir dessa interpretação literal o
caminho tem a ver com o ponto de vista de quem percorre, depende da posição do
corpo em relação ao caminho.
- Charles Kahn fala sobre esse fragmento
ao analisar outro fragmento, o 102.
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Fragmento
102:
“Para as almas (psychai) é morte tornar-se (ou nascer como) água, para a água é
morte tornar-se terra; da terra surge (nasce) a água, e da água a alma (psyché).
Comentários:
- Kahn comenta o fato de ser esse mais
uma composição circular de Heráclito, que acaba onde começou com a palavra psyché. Comenta ainda da passagem do
plural (psychai) ao singular (psyché).
“A forma no plural (...) sugere a
referência à alma ou sopro vital dos homens individuais, que, na crença
popular, abandona o corpo na morte e passa como um fantasma para o mundo
subterrâneo. Mas a forma singular aponta para a psyché como um elemento constitutivo da ordem natural, como a terra
ou a água (...). Desse modo, Heráclito substitui o retrato homérico da descida
das pschai humanas para o submundo
pela sua própria versão do caminho elemental “para baixo”, em direção,
sucessivamente, à água e à terra, e em seguida os mesmos estágios são repetidos
em ordem inversa, como “caminho para cima” (p. 370).
“Apenas a transição para cima na direção da água p e da terra é descrita como morte
(assim como nascimento); o retorno para cima é descrito apenas como nascimento
ou vir a ser” (p. 370)
“Na medida em que os caminhos para cima
e para baixo são “um e o mesmo”, todo nascimento também pode ser descrito como
morte. Mas há ainda um outro sentido no qual o caminho para baixo é mais
verdadeiramente o caminho da mortalidade, o apagar do fogo, enquanto o caminho
para cima é, nesse mesmo sentido, o caminho da vida e do reacendimento” (p.
370)
- A psyché está ligada as transformações físicas e aos ciclos dos
elementais:
“O que é novo (...) é a descrição dessa
transições em termos de morte e nascimento, e a presença da psyché no princípio e no fim da série.
Esses dois pontos estão relacionados entre si. Para Heráclito tudo é um forma
de vida, e não pode haver nenhuma descontinuidade fundamental entre o reino da psyché e o das transformações
elementais. O fragmento CII deixa isso bastante claro ao integrar a psyché no interior de uma série de
transformações físicas”.
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Fragmento
106:
“Um homem quando bêbado é conduzido por
um rapaz imberbe, cambaleando, sem perceber para onde vai, tendo a alma úmida”
(p. 99)
Alma: espírito vital ou vitalidade.
(p.99)
Alma: psyché, sopro de vida, vida; espírito, fantasma; espírito, alma.
(p. 72)
Comentários:
“(...)
referência à dissolução psíquica ou “morte” parcial no elemento líquido” (p.
380)
-
Kahn aponta ressonância também com outros fragmentos, por exemplo, o que se
refere a rapaz imberbe (anebos) o
fragmento que diz que “deveriam ser enforcados até o último homem (Hebedon) e deixar a cidade para os
garotos (aneboi)”; estes cidadão
cambaleiam como bêbados, e um bêbado é pior que uma criança” (p. 380)
“Assim,
de modo semelhante, o verbo epaion
“(sem) perceber (por onde vai)”, ecoa por inversão a definição de temperança
como “pensar bem””, sophronein em
XXXII: “agir e falar... percebendo (epaiontes)
as coisas de acordo com sua natureza”. (p. 380)
“Como
assinala Bollack-Wismann, as construções em particípio desenvolvem uma espécie
de análise causal em três estágios: o homem perdeu o controle de seu corpo,
porque perdeu a sua percepção e porque a lucidez da sua psique foi enfraquecida
pelos fluidos que ele ingeriu” (p. 380)